Hei de confessar que em poucos momentos da minha vida eu parei para pensar sobre a razão sociológica da existência da religião. Nos momentos em que pensei ou era de forma rasa ou recheada de pressuposições pré determinadas que enviezaram minhas conclusões a respeito. Frequentei alguns cultos em toda minha infância, catolicismo, protestantismo, espiritismo até os místicos Roza Cruzes, e ela (a religião) sempre foi pra mim não como uma obrigação, mas como um momento de “ficar bem comigo mesmo, aliviar minhas falhas no dia a dia, por mais que sejamos humanos e errantes”, egoísta já em sua gênese. Acredito que permeiam várias sensações intangíveis diferenciadas em toda parte do mundo e em todas as pessoas, não vou limitar minha observação apenas em meu empirismo. Muitos ainda conservam o preceito do início da era moderna de sacrifício das vontades mundanas, supressão dos desejos materialistas individuais, negação da riqueza e das sensações carnais que a vida pode proporcionar, uma espécie de negação do presente em prol de uma salvação no ato do julgamento final. Acredito também que muitos se sentem como se fossem a algum espetáculo de ostentação e afirmação social (muitas da vezes inconscientes) e que estão alí para ouvirem argumentos de um mundo de certezas, resumido, delimitado por muros sólidos, mesmo que vivamos em um mundo incerto. É confortante o fato dos livros de auto-ajuda e religiosos nos darem sempre uma linearidade sem eventos aleatórios.
Para se entender a religião na pós-modernidade, há a necessidade de se entender uma mudança na concepção da morte. Houve uma significativa mudança da concepção de morte com a criação das instituições modernas (hospital, exército, escolas, estado), avanço tecnológico, mercadológico e desenvolvimento das correntes humanistas em que colocavam o homem como o centro do universo, detentor de suas vontades, e dono do seu destino. Assim como tudo no mundo, a morte também sofreu uma divisão social do trabalho e foi especializada em pequenos fragmentos. Hoje não se morre mais como antigamente e isso provocou mudanças profundas na religião e suas formas de culto. A morte que antes da modernidade (Sec. XVII e XVIII) era uma estágio final a ser alcançado, rígido, sólido, um caminho linear, uma redenção do espírito que se sacrificou durante toda uma vida em prol de uma salvação, passou-se de acordo com os fatores acima citados a se fragmentar na realidade presente do homem. Na pós-modernidade a morte deixou o lado supraterreno de “um estágio no final da vida e longe da capacidades humanas”, para habitar a vida cotidiana e material – hoje se morre diariamente com o consumo de alimentos trangênicos, falta de exercício físico, consumo de alimentos nocivos a saúde dentre outros fatores. A religião de outrora embasada na supressão de desejos materiais para um juizo final se tornara incompatível com os anseios de mercado da era moderna em que a pedra fundamental está no bombardeio de desejos e sensações instantâneas pela máquina publicitária.
A morte se tornou uma preocupação especializada, um tanto aparentado com a pornografia como Geoffrey Gorer observou, um evento a não ser discutido em público e, sobretudo, “na frente das crianças”. O morto e particularmente o agonizante foram retirados para além dos confins da vida diária, providos de espaços separados não acessíveis ao público e confiados ao cuidado de “profissionais”. A cerimômia publica elaborada e espetacular dos funerais foi substituída pelo breve e, em geral, privado sepultamento ou pela cremação do corpo, sob a eficiente supervisão de especialistas.
Como mencionado acima a morte se assemelhou a todos outros conjuntos, a morte foi fatiada e fragmentada em inúmeras ameaças cada vez menores à sobrevivência. A preocupação com a morte antes de modernidade da qual não se podia fazer nada, um esqueleto de veste preto brandindo a foice, que bate à porta apenas uma vez e cuja entrada não pode ser impedida, perdeu sua unidade. Acha-se a morte agora dissolvida em minúsculas, mas inumeráveis armadilhas em emboscadas da vida diária. Tende-se a ouvi-la batendo agora, de quando em quando, diariamente, com comidas gordurosas, em ovos contaminados, em tentações ricas em colesterol, em sexo sem preservativo, em fumaça de cigarro, em ácaros invisíveis como também em gases de chumbo lançados na atmosfera. Sabe-se agora que se pode obstruir a porta quando a morte bate, podendo-se sempre substituir as velhas e enferrujadas fechaduras, alarmes, por outros novos e aperfeiçoados mecanismos.
Outro fator intrigante é que enquanto a morte do próximo e querido se tornou um evento completamente privado e quase secreto, a morte humana como tal se converteu numa ocorrência diária, bastante familiar e comum para se despertar horror ou quaisquer outras emoções fortes como antes da modernidade. Como todos os outros espetáculos, a morte, “enquanto vista na TV”, é um drama representado em realidade virtual, não menos mas não mais diferente do que façanhas dos heróis da Jornada nas Estrelas, dos cowboys que atiram como Rambos ou Exterminadores. Ou seja, ao mesmo tempo que ela é privação (em família) ela é banalizada e fato comum no Brasil Urgente.
O resultado total da maneira moderna de reagir à realidade da morte minou a perspectiva da “vida para a morte” da religião pré-moderna. A questão da inevitabilidade da morte com a eficiência das técnicas de proteção a saúde enfraqueceram essa concepção religiosa. A morte outrora disposta pela religião como uma espécie de acontecimento estraordinário se tornou uma ocorrência momentosa “o fim de uma história”, e não é verdade afirmar que as histórias só mantém interesse às pessoas enquanto se desenvolvem e mantêm as portas abertas a possibilidades de surpresa e aventura? Nada ocorre depois que a história acaba, e os especialistas religiosos não tinham muito a oferecer áqueles que estão ansiosos por viver a história e buscar sua imortalidade.
Nessa nova estrutura moderna existem três fatores que se chocaram com os preceitos religiosos e sua utilidade, como afirma Alain Touraine. Primeiramente, a religião pode servir à dependência e à subordinação da rotina a um ritmo de vida interpretado como natural ou sobrenatural, mas em ambos os casos interpretados como invariável. Tal ritmo de vida foi muito patentemente interrompido, e o nome “modernidade” representa o seu colapso. Não restou muita coisa a que a religião, com sua mensagem de mundo pré-ordenado e criado de uma só vez pudesse servir. Em segundo lugar, a filiação a uma igreja ou seita pode desempenhar um importante papel no manter sólidos e impenetráveis os muros das divisões sociais, servindo assim a uma estrutura social marcada pela baixa mobilidade e permanência dos fatores de estratificação. Tal estrutura rígida foi gradualmente erodida nos processos cada vez mais vigorosos, flexíveis, difusos e descentrados da sociedade e novamente a religião, com sua mensagem de “cadeia do ser divino” estava mal preparada para compreender a nova situação e os novos desafios. Em terceiro, a utilidade da religião que antes era descrita como “a apreensão do destino, da existência e da morte” sofreu um isolamento desse conceito, passando agora a “como a dança e a pintura, a religião se torna uma atividade de lazer, isto é, comportamento deliberado, não-regulamentado, pessoal e secreto”, ou seja, o interesse pela existência e pela morte foi relegado a passatempos de lazer, aqueles que apresentam apenas um impacto reduzido no modo como são organizadas as atividades da vida séria e cotidiana. O ponto importante é que, com o objetivo de resistir a essa marginalização religiosa, as igrejas e seitas precisaram se assenhorar-se de outras funções que não a de abastecer com preocupações sobre o mistério da existência e da morte.
Permitam-me inferir um trecho do livro “O mal estar na pós-modernidade” do Bauman para exemplificar esse choque da religião com a nova realidade.
“A vida de auto-imolação, mortificação do corpo, rejeição das alegrias terrenas era o que a salvação, segundo seus profetas e profissionais da devoção exigiam: eles insistiam na penitência e desprendimento de coisas terrenas tais como honras, riqueza, beleza e desejo carnal. Por outro lado, o momento rígido da morte mostrava a acentuada tendência a se converter em momento da vida. Desde que a vida no pensamento moderno é tão curta, vamo-nos apressar para goza-la. Desde que o corpo morto será tão repulsivo, vamos correr para obter dele todo prazer possível, enquanto ainda temos boa saúde. A conquista da salvação espiritual por meio de regras crucialmente difíceis, impostas pelos pregadores, estavam cada vez mais distantes e nebulosas de serem alcançadas. A exacerbação do medo da morte e o encorajamento do sonho da vida eterna mostravam-se assim contraproducentes. Preocupações com honras, riqueza, beleza e desejo carnal tinham de ganhar primazia sobre preocupações com a vida após a morte. A modernidade desfez o longo domínio que o cristianismo tinha feito, repeliu a obsessão com a vida após a morte, concentrou a atenção na vida aqui e agora, redispôs as atividades da vida em torno de histórias diferentes, com metas e valores terrenos e de um modo geral, tentou desarmar o horrror da morte com o desenvolvimento da medicina.”
Obviamente, já não são as “organizações religiosas”, com sua mensagem da perpétua insuficiência do homem, que são mais bem adaptadas à nova realidade de acumulo do máximo de experiências em vida terrena, ou mensagem de experiência máxima a quem não atinge o máximo. “Você pode fazer isso” “Todo mundo pode fazê-lo, só tem de botar a culpa em você mesmo”. Desligar o sonho da “esperiência máxima” das práticas inspiradas na religião, de abnegação e afastamento das atrações mundanas, foi necessário, e ainda mais, atrela-la ao desejo dos bens terrenos e dispô-los como a força condutora de intensa atividade como consumidor. Se a versão religiosa da experiência máxima costumava reconciliar o fiel com uma vida de miséria e privação, a versão pós-moderna reconcilia seus seguidores com uma vida organizada em torno do dever de um consumo ávido e permanente, embora nunca devidamente satisfatório.
Os exemplos e profetas da versão pós-moderna da experiência máxima são recrutados na aristocracia do consumo – aqueles que conseguiram transformar a vida numa obra de arte da acumulação e intensificação de sensações, graças a consumir mais do que os que procuram comumente a esperiência máxima. Consumir produtos mais refinados e consumi-los de um modo mais requintado. Utilizando da metáfora do autor goiano Flávio Carneiro em sua obra A Confissão, o desejo e sonho de seu personagem, pé rapado, consumidor voraz e sem requinte era aprender a apreciar um vinho, um bom queijo, saber porque aquilo era bom, sentir aquela sensação sublime e única e, no decorrer da história através de um vampirismo pós-moderno, ele transa com as mulheres e adquire as experiências máximas da vida dessas mulheres, aprendendo a degustar um bom vinho, sentir o cheiro ideal de uma carne de requinte, apreciar obras de arte, paisagens. Exemplifica bem a busca da experiência máxima desejada pela sociedade pós-moderna, acumular insaciavelmente experiências máximas. Metáfora essa do orgasmo multiplo, em que um corpo preparado , servido por um espírito igualmente excitado, é um corpo capaz duma repetida e mesmo contínua intensidade de sensações, um corpo para sempre “nas alturas”, constantemente aberto a novas oportunidades de experiência que o mundo ao redor pode proporcionar – uma espécie de bateria bem afinada, sempre pronta para emitir tons de sublime beleza.
A promessa de nova experiência, capaz de esmagar e espantar o espírito da morte que gela a espinha, é o ponto a ser realçado na venda de alimentos, bebidas, carros, cosmétics, óculos, pacotes de feriado. Cada um acena com a perspectiva de “viver a fundo” sensações nunca experimentadas antes e mais intensas do que qualquer antes provada. Cada nova sensação deve ser “maior”, mais irresistível do que a de antes, com a vertigem da experiência máxima. Função essa meta-experimental segundo Bauman. Segundo ele é essa função meta-experimental que é hoje executada por numerosos movimentos de “auto-aperfeiçoamento”, que extraem seus poderes de sedução da promessa de desenvolver seu potencial de sensualidade do corpo mediante exercícios, contemplação ou auto-concentração, rompendo bloqueios psíquicos e constragimentos produzidos pelas conveções, deixando livre os instintos reprimidos ou purgando males ocultos, desenvolvendo as habilidades de auto-abandono e submissão passiva do “fluxo” de sensações, ou abraçando os mistérios esotéricos, sobretudo exóticos, capazes de ensinar e guiar todos aqueles esforços. O axioma que escora todos esses movimentos é que experimentar, como todas outras faculdades humanas, é acima de tudo um problema técnico, e que adquirir a capacidade para tal é uma questão de dominar as técnicas apropriadas.
Nessa carência de certeza na pós-modernidade, pondo em cheque todas as intituições tão solidamente construídas por todas as eras da humanidade (família, igreja, estado), as novas igrejas, seitas, gurus de auto ajuda, líderes de empresa, mestres na arte do aconselhamento, estão fornecendo um terreno sólido, seguro, sem aleatoriedade para a redução das ansiedades cotidianas. E não me espanta o fato dessas pessoas e organizações estarem com tanto prestígio, altas vendas em livrarias, cultos com milhares de pessoas, compras de horários televisivos. As pessoas em suas identidades praticamente dissolvidas e perenes estão famintas por segurança, certeza, eficiência, e tais sujeitos sociais com discursos ávidos de eloquência não menos nocivos, estão a nos mostrar a previsibilidade perdida com o início da modernidade, e melhor, estão nos mostrando com atos publicitários e propagandas a forma sublime de consumir essa certeza perdida, seja ela um produto tangível ou uma sensação confortante intangível, pois todo produto tangível vem implícito uma sensação intangível confortante de pertencimento a sociedade de consumo.
A igreja atualmente também se insere na selva mercadológica através dos novos Fundamentalistas religiosos, uma nova forma de religiosidade totalmente adaptada aos anseios de consumo. O Fundamentalismo é um fenômeno inteiramente contemporâneo e pós-moderno, que adota totalmente as características organizacionais “racionalizadas” e tecnologias compatíveis, tentando uma adequação do aproveitamento das atrações modernas sem pagar o preço que elas exigem, ou seja, a penitência. O preço agora em questão disseminada pelos fundamentalistas é a agonia do indivíduo condenado à auto-suficiência, autoconfiança e a vida de uma escolha nunca plenamente fidedigna e satisfatória.
A amarga experiência em questão é a experiência da liberdade: da miséria da vida composta de escolhas arriscadas, que sempre significa aproveitar algumas oportunidades e perder outras, ou da incurável incerteza criada em toda escolha, da insuportável responsabilidade pelas desconhecidas consequências de toda escolha, do constante medo de impedir as futuras e, no entando, imprevistas possibilidades, do pavor da inadequação pessoal, de experimentar menos e não tão intensamente como os outros talvez o consigam, do pesadelo de não estar à altura de novas e aperfeiçoadas fórmulas da vida que o futuro notoriamente caprichoso pode trazer. E a mensagem que sugere dessa experiência é : não, o indivíduo humano não é auto-suficiente e não pode ser autoconfiante. Não se pode condenar a si mesmo: é preciso ser guiado, dirigido e informado do que fazer. Essas não são mais fraquezas da espécie humana, mas do indivíduo humano.
A esse respeito, o fundamentalismo traz a público a subterrânea ansiedade e premonição normais e quase universais sob a égide pós-moderna e não mais arcaica de submissão. Ela dá expressão pública ao que muitas pessoas pressentem o tempo todo. A estrutura da vida que o Fundamentalismo oferece leva meramente a sua conclusão do “culto de aconselhamento” acima citado, e orientação profissional, bem como a preocupação com a autodisciplina assistida por especialistas, duas coisas diariamente promovidas pelo consumidor pós-moderno. O Fundamentalismo religioso é a encarnação de uma tendência de que é cúmplice da cultura pós-moderna. O Fundamentalismo para concluir é um filho legítimo da pós-modernidade, nascido de suas alegrias e tormentos, do mesmo modo, de seus empreendimentos e inquietações.
O fascínio do fundamentalismo provém de sua promessa de eliminar dos convertidos a agonia de escolha. A pessoa sabe para onde olhar quando as decisões da vida devem ser tomadas, nas questões grandes e pequenas, e sabe que, olhando para ali, ela faz a coisa certa, sendo evitado, desse modo, o pavor de correr risco. É uma espécie de remédio radical contra esse veneno da sociedade de consumo conduzida pelo mercado. Num mundo em que todos os meios de vida são permitidos, mas nenhum é seguro, elas mostram coragem suficiente para dizer, aos que estão ávidos de escutar, o que decidir de maneira que a decisão continue segura e se justifique em todos os julgamentos a que interesse. O Fundamentalismo religioso é oferecido a todos aqueles onde a liberdade individual é excessiva ou insuportável o que não difere de infinitas outras formas de Fundamentalismo.
Se a racionalidade típica do mercado se subordina à promoção da liberdade de escolha e prospera sobre a incerteza das situações, execução e escolha, a racionalidade fundamentalista coloca a segurança e a certeza em primeiro lugar e condena tudo o que solapa essa certeza. Ela legisla em termos nada incertos sobre cada aspecto da vida, destruindo a carga de responsabilidade que se acha pesadamente sobre os ombros dos indivíduos, esses ombros que a cultura pós-moderna proclama onipotentes, e o mercado proclama como tais, mas que muitas pessoas acham-se frágeis demais para essa carga.
Segundo Kepel, o fundamentalismo religioso tem “uma singular capacidade de revelar os males da sociedade”. Com a agonia de solidão e abandono induzida pelo mercado como sua única alternativa, o fundamentalismo religioso ou de outra maneira pode contar com a clientela sempre crescente. Seja qual for a qualidade das respostas, as perguntas a que responde são genuínas.